Entre o Brilho e o Vazio: o Uso Compulsivo das Telas na Infância e Adolescência
- Ligia Estanqueiros
- 19 de ago.
- 4 min de leitura
Em junho de 2025, pesquisadores da Columbia University e Weill Cornell Medicine publicaram no Journal of the American Medical Association (JAMA) um estudo que acompanhou quase 4.300 crianças, dos 8 aos 12 anos, para investigar como diferentes padrões de uso de redes sociais, videogames e celulares afetam a saúde mental.A pesquisa trouxe um dado que desloca o foco de uma das discussões mais comuns sobre tecnologia: não é o tempo total que essas crianças passam diante das telas que mais impacta seu bem-estar, mas o uso compulsivo, aquele que invade o cotidiano, substitui outras experiências e se impõe como algo difícil de controlar.

Do estudo:
"Addictive use of social media, video games, or mobile phones — but not total screen time — is associated with worse mental health among preteens." O uso compulsivo de redes sociais, videogames ou telefones celulares — mas não o tempo total de tela — está associado a pior saúde mental entre pré-adolescentes.
Esse dado conversa diretamente com um ponto central da psicanálise: não é o objeto em si que provoca angústia, mas a relação que o sujeito estabelece com ele. Não é a quantidade de horas, mas a lógica desse uso. A tela pode funcionar como lugar de encontro e criação, mas também como refúgio para escapar de um vazio ou silenciar um incômodo interno.
Pense em um adolescente que, mesmo após horas online, fecha o celular com a sensação de que “ainda falta algo”. A tela aqui não preenche, apenas mantém acesa uma busca sem fim. Na psicanálise, essa sensação aponta para a dimensão estrutural da falta: não se trata de eliminá-la, mas de encontrar modos singulares de habitá-la e simbolizá-la.
Do estudo:
"Both high and increasingly addictive screen use were associated with worse mental health (e.g. anxiety, depression, or aggression) and suicidal behaviors and thoughts." Tanto o uso compulsivo elevado quanto o uso compulsivo crescente de telas foram associados a pior saúde mental (por exemplo, ansiedade, depressão ou agressividade) e a comportamentos e pensamentos suicidas.
Na escuta clínica, esse movimento se aproxima do que Lacan descreveu como circuito do gozo: um fazer que se repete não para alcançar satisfação, mas para manter o próprio ato. É como procurar por uma porta que, a cada passo, se afasta mais. Nesse percurso, a experiência de não encontrar saída pode reativar um sentimento mais primitivo, o do desamparo.
Na psicanálise, o desamparo não é apenas a falta de recursos externos, mas a condição estrutural de todo sujeito: somos lançados no mundo dependentes do cuidado do outro para sobreviver, e é a qualidade desses primeiros encontros que oferece as primeiras referências para lidar com a falta e com a espera.
Quando a tela ocupa esse lugar, ela oferece uma saída ilusória para a angústia, ou seja, parece acalmar, mas não ajuda a construir recursos internos para lidar com a falta, apenas anestesia o desconforto por um tempo, até que ele volte a se apresentar e o ciclo recomece.
Do estudo:
"These kids experience a craving for such use that they find it hard to curtail." Essas crianças sentem um desejo intenso por esse uso que acham difícil de conter.
Essa “fissura” não é apenas gosto ou hábito, é um chamado interno urgente. Para algumas crianças, a tela ocupa o lugar de um objeto de companhia: está sempre disponível, responde com previsibilidade e oferece uma sensação de acolhimento quando a presença de outros não está assegurada.
Na clínica, isso se traduz em frases como: “Quando estou jogando, esqueço de tudo” ou “É no celular que me sinto parte das coisas”. São expressões que revelam como, para aquele sujeito, o contato digital pode parecer mais seguro e menos frustrante do que o contato presencial.
No entanto, esse “acolhimento” vem com um custo: a criança vai se acostumando a um tipo de laço que dispensa a imprevisibilidade do outro real, o amigo que pode discordar, o colega que pode se afastar, o adulto que pode frustrar. Assim, a tela reforça um vínculo sem conflito, mas também sem elaboração simbólica.
Do estudo:
"Policy efforts should move away from generic limits on screen time and instead focus on identifying and addressing addictive patterns of screen use." Os esforços de políticas públicas devem se afastar de limites genéricos para o tempo de tela e, em vez disso, focar na identificação e no enfrentamento dos padrões de uso compulsivo.
Esse deslocamento proposto pelos pesquisadores é também um convite para pais, educadores e profissionais: mais do que controlar horários, é preciso compreender o que a tela está oferecendo para aquela criança.
Na psicanálise, isso significa perguntar: a tela é um espaço de criação, de socialização e expressão? Ou é um substituto que ocupa o lugar de um laço humano enfraquecido?
Do estudo:
"Total screen time was not associated with suicide-related or mental health outcomes." O tempo total de tela não esteve associado a desfechos relacionados ao suicídio ou à saúde mental.
Esse dado quebra um mito recorrente: não é estar “muito tempo” que necessariamente faz mal, mas o tipo de relação que se estabelece. A questão deixa de ser “quantas horas de tela?” por dia e passa a ser “o que a criança encontra ou deixa de encontrar ali?”.
Reflexão final
Quando o brilho da tela se torna companhia constante, talvez estejamos diante de algo que não é sobre tecnologia, mas sobre vínculos e presenças.
Se a compulsão digital denuncia um vazio, precisamos perguntar: esse vazio é feito de quê? Da ausência de tempo compartilhado? Da falta de espaço para falar e ser escutado? Ou de um mundo que oferece menos encontros reais e mais conexões rápidas?
E, diante disso, como podemos devolver às crianças e adolescentes não apenas limites, mas lugares onde a presença humana possa, de fato, fazer diferença?
Fonte: Columbia University Irving Medical Center & Weill Cornell Medicine. Addictive use of social media, not total time, associated with youth mental health. Publicado no JAMA Network Open, 18 de junho de 2025. Disponível em:
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