Adultização infantil: quando o olhar antecipa a criança
- Ligia Estanqueiros
- 14 de ago.
- 2 min de leitura
Nos últimos dias, um vídeo do criador de conteúdo Felca viralizou ao denunciar a adultização infantil, especialmente no contexto da exposição de crianças na mídia e nas redes sociais. O debate ganhou alcance nacional, mas, para além da polêmica, ele nos convida a olhar para um fenômeno que a psicanálise há muito reconhece: o que acontece quando a criança é antecipada no lugar de adulto pelo olhar do outro?

Na psicanálise, a infância não é apenas um período cronológico, mas um tempo psíquico. É nesse tempo que a criança pode se constituir como sujeito, sustentada pelo brincar, pela fantasia e pelo jogo entre presença e ausência que funda o desejo. Quando esse tempo é invadido, algo da experiência de ser criança se perde.
A adultização ocorre quando se atribui à criança um papel que não é o seu, seja por expectativas emocionais, responsabilidades, sexualização precoce ou exigências de desempenho. No caso da exposição midiática, esse processo se intensifica: a criança é convocada a sustentar imagens e comportamentos que pertencem ao mundo adulto, colocando seu corpo e sua subjetividade sob um olhar que cobra, avalia e consome.
O risco é que a criança passe a se organizar em torno desse lugar atribuído, moldando sua identidade a partir da função que exerce para o outro, e não a partir de seu próprio ritmo de desenvolvimento. O brincar, que deveria servir como espaço de criação simbólica e elaboração, é substituído por uma adaptação forçada às demandas externas.
As consequências podem se estender pela vida adulta: dificuldade em confiar no cuidado do outro, sobrecarga emocional, hipervigilância e uma relação com o próprio corpo atravessada por insegurança e autocobrança. Muitas vezes, essa história se repete: adultos que viveram essa antecipação precoce tendem, sem perceber, a repassar o mesmo destino a outras crianças.
O vídeo do Felca revelou um sintoma cultural, mas a psicanálise nos ajuda a ir além da denúncia: é preciso reconhecer que, quando a infância é atravessada pelo olhar que a antecipa, algo da constituição subjetiva se perde.
E a pergunta que fica é: estamos dispostos a sustentar a infância como tempo próprio, ou seguiremos transformando crianças em adultos para o nosso olhar?
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